Não tenho filosofia. Eu tenho poesia

Que tem, que a todos assusta?...

Em algumas últimas aulas de literatura, comentamos sobre o Barroco e sobre o poeta Gregório de Matos. Famoso também por seus poemas satíricos, enquanto preparava aulas e lia vários textos seus, fiquei a pensar no quão atual a temática desenvolvida em vários de seus poemas é, ou está. Dentre as várias críticas, algumas delas eram direcionadas ao governo da Bahia, fato que, inclusive, contribuiu para que o poeta fosse exilado do Brasil e, mesmo retornando anos mais tarde, nunca mais pôde pisar na Bahia novamente. Hoje eu vejo a "sensura" disfarçada em discursos manipuladores ou até mesmo em projetos de lei. Discutir política e denunciar seus desmandos sempre foi perigoso, mas sempre necessário e, acrescento para hoje, urgente. Abaixo, o fragmento de um poema satírico bem conhecido. Atualizando-o para o nível nacional, é perturbador o quão e há quanto tempo o Brasil sofre com a má administração, a exploração e a corrupção. Solução? Só depende dos próprios brasileiros e, claro!, muito investimento em educação. Mas não só não há investimento, como ainda tentam limitá-la ao máximo. Será por quê?
 

Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste socrócio?... Negócio.
Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.


[...]


E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.
 

[...]

O açúcar já acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.

Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence. 


 * socrócio: termo criado pelo poeta para se obter a rima com "negócio", talvez derive do verbo socrestar (furtar/rapinar). Na edição da Academia Brasileira de Letras está registrado "rocrócio", isto é, retrocesso.


Gregório de Mattos e Guerra (1633/1696), o Boca do Inferno, nascido na Bahia, foi o primeiro de nossos satíricos, homem de língua destravada e fácil veia poética. Estudou humanidades em Portugal, tendo feito o curso de leis na Universidade de Coimbra. Na terra mãe foi juiz criminal e de órfãos. Voltou ao Brasil com 47 anos, sob a proteção do arcebispo da Bahia, D. Gaspar Barata. Tantas e tais fez que não só perdeu a proteção do prelado, como ainda foi degredado para Angola. Reabilitado, voltou ao Brasil, indo para Recife, onde conquistou simpatias e viveu com menos turbulência que na Bahia. É o patrono da cadeira n.º 16 da Academia Brasileira de Letras. Além de versos satíricos e humorísticos, escreveu poesias eróticas com a maior incontinência verbal.

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