Não tenho filosofia. Eu tenho poesia

Palimpsesto

Trabalho com a possibilidade. Com a hipótese. Com a pergunta. Enquanto houver perguntas e eu não tiver respostas, continuarei a escrever. Copiando Clarice. Como ela, há décadas, conseguiu traduzir o que há em mim tão bem? Talvez, o que há em todos os poetas, em todos os escritores. Perguntas. Muitas perguntas.
Achei que talvez a idade adulta pudesse me responder a algumas, até esclareceu algumas coisas, porém, é inegável que elas se estendem, se multiplicam e, quando não se repartem, ampliam-se. Aí, me vejo menina de novo diante do inexplicável e desafiada pela folha em branco. A folha em branco dá medo. Como um espelho que pode refletir-me, em cada entrelinha de palavra e frase, costurando-se uma a outra, enquanto, como num palimpsesto, eu fico ali, escondida, embaixo do texto explícito e, a qualquer momento, posso ser reconhecida por um olhar mais afiado.
Olhares afiados. Também tenho medo deles, pois podem, de fato, deixar-nos cicatrizes profundas após penetrar em nossa alma, como se mais um texto, entre aqueles dois – explícito e implícito – também se escrevesse.
Textos sobre textos que se escrevem e reescrevem-se um sobre o outro, sobrepondo, deixando explícito o mais novo, mas, nunca apagando, de fato, o antigo. A qualquer momento o texto antigo pode ser revelado. Seria isso nossa vida? Uma sucessão de vidas numa mesma vida? Assim seriam criadas as máscaras sob as quais vamos escondendo aquilo que os outros – os “leitores” – acham feio? Acham ridículo? Acham... bobo?
De repente, o texto escondido seria mais precioso. Embora a autenticidade tenha seu preço. Como tantas outras palavras...
Palavras. Ah, palavras. Lido com elas todos os dias. Todos os dias essa lida se desgasta e se renova. Todos os dias, tento ensinar dentro do que já sabem alguma novidade. Todos os dias, tento mostrar que atrás de um texto há outro texto. Sempre há outro texto. Sempre há uma outra palavra por trás de uma palavra, porque uma palavra é um mundo inteiro. Às vezes eu consigo, às vezes saio decepcionada. Às vezes acho que meu texto está ficando superficial, igual a um monte de outros textos iguais e superficiais. Como o mundo quer. Como as pessoas aceitam. É quando sinto que há algo anterior, por baixo, já escrito e que se revira, borra, tentando desfazer a cópia desse texto novo, sem graça, confortável, igual, que tenta se escrever em mim.
Palavras. Se usadas demais podem se desgastar. Se for como uma roupa, será usada até que irá puir e se rasgar e desaparecer na poeira dos tecidos. Se for como a faca, será afiada, afinando, lâmina que entrará na carne deslizando, ferindo fino, até sangrar.
Palavras. Talvez tenham me traído alguma vez. Em minha desesperada autenticidade, despejei-as diluídas em emoção e, assim, afoguei possibilidades. Talvez não tenham me traído, pois, ao despejá-las, tenham lavado um texto falso e o que revelaram para mim fosse a verdade. Será que algum dia terei resposta para esse capítulo? Elas – as palavras! – trouxeram-me a pergunta, não seria justo, portanto, trazerem-me a resposta? Elas me trouxeram. Elas me levaram. Um capítulo não terminado como um livro que o escritor abandonara na gaveta.
Eu usei a palavra prisão ao lado da palavra amor. Duas palavras fortes demais. Ah, se ele soubesse... E acaso mereceria saber? Acho que ele usou as palavras nunca mais.
Sim. Nossas vidas são textos sobre textos. Escrevemos e, quando é preciso “virar a página” ou “rasgá-la”, na verdade não é isso que acontece. Como antigamente se fazia, raspamos a tinta do texto velho e reescrevemos por cima. É impossível esquecer de verdade. É impossível apagar marcas, ficam palavras sobrepostas, nem sempre marcas expostas, mas estão ali – boas ou ruins – estão ali, por trás do que os outros leem em nós. Mudamos, às vezes, o discurso, mas não mudamos a mentalidade ou a opinião que vivenciamos no dia a dia, porque o verdadeiro texto está escondido. Fingimos. Disfarçamos. Sofremos. Tantas são as razões por que fazemos isso... Tantas i-razões.
Às vezes alguém chega e consegue enxergar o texto verdadeiro por trás daquele texto exposto. E, às vezes, essa pessoa vai embora, tão subitamente quanto chegara. E fica a pergunta. Talvez, para nos lembrar de quem somos. Talvez... Talvez... Hipóteses. Uma palavra: um mundo de possibilidades. A vida – um palimpsesto onde a vivência imprime texto por texto, capítulo por capítulo, sem linearidade, impossível de apagar, no máximo, passível de se disfarçar.
por Elayne Amorim

Um comentário:

Carlos Brunno Silva Barbosa disse...

Fodástica prosa-reflexão-poética! Me lembrou um poema de uma escritora santista chamado Palimpsesto (foi a partir daí que conheci o significado da palavra). Não me lembro dos versos do poema, talvez só inconscientemente; sei que o título do poema ficou marcado na memória e seu conteúdo refletindo no fazer e refazer também.
Seu texto não deve nada ao poema premiado da autoria santista; ambos são fodásticos. Esse debruçar poético sobre a arte do fazer poético, quando bem elaborado como o seu, sempre chama toda a minha atenção.
Parabéns, belíssima tradução poética!