Em tempos em que as pessoas honestas - ou as que procuram agir com honestidade - são "punidas" em nosso país, um texto inquietante que nos leva à reflexão...
Conversando com amigos ou conhecidos, muitos partilham da mesma angústia: não se pode mais ser honesto? Agir de modo a não mentir ou, pior, a não prejudicar ao outro é proibido?
O exemplo começa com os mandos e desmandos dos "políticos" - já se criaram os clichês "todos os políticos são corruptos" e "que se roube, mas que pelo menos faça alguma coisa". Frases aceitáveis (?), pelo menos aceitas por muitos. A doença da enganação e da corrupção alastra-se cada vez mais por todos os lados (está fazendo parte do cotidiano das pessoas, sejam políticos ou não) e, aquilo que era pra ser o "certo" passa a ser o "errado".
Mas, será que prejudicar ao outro, roubar, furtar, dar um "jeitinho", ludibriar, mentir, enganar... enfim, tudo isso é certo? Que "valores" nossa linda sociedade cultiva hoje?
Bem, quem será a "ovelha negra"? Ou melhor, quem vai suportar ser a ovelha negra?
A OVELHA NEGRA
Havia um país onde
todos eram ladrões.
À noite, cada habitante saía, com a gazua e
a lanterna, e ia arrombar a casa de um vizinho. Voltava de madrugada, carregado
e encontrava a sua casa roubada.
E assim todos viviam em paz e sem prejuízo,
pois um roubava o outro, e este um terceiro, e assim por diante, até que se
chegava ao último que roubava o primeiro. O comércio naquele país só era
praticado como trapaça, tanto por quem vendia como por quem comprava. O governo
era uma associação de delinquentes vivendo às custas dos súditos, e os súditos
por sua vez só se preocupavam em fraudar o governo. Assim a vida prosseguia sem
tropeços, e não havia ricos nem pobres.
Ora, não se sabe como, ocorre que no país
apareceu um homem honesto. À noite, em vez de sair com o saco e a lanterna,
ficava em casa fumando e lendo romances. Vinham os ladrões, viam a luz acesa e
não subiam.
Essa situação durou algum tempo: depois foi
preciso fazê-lo compreender que, se quisesse viver sem fazer nada, não era essa
uma boa razão para não deixar os outros fazerem. Cada noite que ele passava em
casa era uma família que não comia no dia seguinte.
Diante desses argumentos, o homem honesto
não tinha o que objetar. Também começou a sair de noite para voltar de
madrugada, mas não ia roubar. Era honesto, não havia nada a fazer. Andava até a
ponte e ficava vendo a água passar embaixo. Voltava para casa, e a encontrava
roubada.
Em menos de uma semana o homem honesto
ficou sem um tostão, sem o que comer, com a casa vazia. Mas até aí tudo bem,
porque era culpa sua; o problema era que seu comportamento criava uma grande
confusão. Ele deixava que lhe roubassem tudo e, ao mesmo tempo, não roubava
ninguém; assim, sempre havia alguém que, voltando para casa de madrugada,
achava a casa intacta: a casa que o homem honesto devia ter roubado. O fato é
que, pouco depois, os que não eram roubados acabaram ficando mais ricos que os
outros e passaram a não querer mais roubar. E, além disso, os que vinham para
roubar a casa do homem honesto sempre a encontravam vazia; assim iam ficando
pobres.
Enquanto isso, os que tinham se tornando
ricos pegaram o costume, eles também, de ir de noite até a ponte, para ver a
água passar embaixo. Isso aumentou a confusão, pois muitos outros ficaram ricos
e muitos outros ficaram pobres.
Ora, os ricos perceberam que, indo de noite
até a ponte, mais tarde ficariam pobres. E pensaram: ‘Paguemos aos pobres para
ir roubar para nós’. Fizeram-se os contratos, estabeleceram-se os salários, as
percentagens: naturalmente, continuavam a ser ladrões e procuravam enganar-se
uns aos outros. Mas, como acontece, os ricos tornavam-se cada vez mais ricos e
os pobres cada vez mais pobres.
Havia ricos tão ricos que não precisavam mais
roubar e que mandavam roubar para continuarem a ser ricos. Mas, se paravam de
roubar, ficavam pobres porque os pobres os roubavam. Então pagaram aos mais
pobres para defenderem as suas coisas contra os outros pobres, e assim
instituíram a polícia e as prisões.
Dessa forma, já poucos anos depois do
episódio do homem honesto, não se falava mais de roubar ou ser roubado, mas só
de ricos ou de pobres; e, no entanto, todos continuavam a ser pobres.
Honesto só tinha havido aquele sujeito, e
morrera logo, de fome.
Ítalo Calvino
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