Não tenho filosofia. Eu tenho poesia

Cavalo pragmático

Acho que alguns seres já nascem prontos. É, assim, prontos. E não precisariam da nossa intervenção.
Vejamos o Thor. Não, o Thor não é o meu cavalo, mas as almas nossas já se pertencem. Esse cavalo nascera pronto, sinto que dispensaria qualquer artifício ou artefato humano para a sua “domesticação”. Um espírito forte, daqueles que se parecem com os ventos. A teimosia, a persistência em querer ou não querer, o olhar firme, decidido; passos igualmente firmes e macios. Talvez sejam essas algumas das características da sua personalidade.

Lembro-me do Thor antes de ser o Thor. Ele era só um cavalo xucro, garanhão e seu porte médio parecia ser imenso diante da gana de liderança entre os outros animais, em sua maioria, já domados. Lembro-me do curral cheio de cavalos e éguas e de que ali não estava o que procurávamos. O dono do curral pediu que buscassem o bicho, e não tardou. Como um apaixonado romântico vê sua alma gêmea pela primeira vez (mesmo que ele mesmo não saiba ser aquela a sua alma procurada...) meus olhos acompanharam aquelas crinas esvoaçantes pelo pasto afora; sua chegada ao curral, gerando rebuliço entre os outros animais e o relinchado poderoso demais para um cavalo de porte médio. Ele definitivamente não possuía porte médio ali, naquele reino de cavalos confinados.
Depois de havermos ter certeza de que sim, era ele, era aquele o que procurávamos (na verdade, já estava vendido para um amigo nosso, mas o homem do curral vendeu-o para nós, nosso amigo ficou feliz pela “pequena confusão”), depois, ele veio para a hospedaria. E foi aí, bem aí, que a parte humana pecou. Thor é um cavalo extremamente inteligente, mas extremamente resoluto. Seu primeiro contato com o cabresto não foi um sucesso e fora vencido pelo cansaço. Ele entendeu que aquilo não o machucaria, mas passou a ter medo de pessoas. Ah, e sua vontade de brigar com os outros cavalos custou muitos consertos em baias e cochos.
Sua domesticação ficara entre a racional e a irracional, nunca fora maltratado, mas certamente dera alguns pulos nas primeiras montadas e bronqueou-se com o ser que insistia em montar-lhe no lombo sem se explicar. Depois? A marcha natural e a imponência nata. O cavalo nascera pronto. O cavalo aprendia tudo o que lhe ensinavam e driblar-lhe a teimosia arrancava boas gotas de suor do cavaleiro. Teimosia essa provinda de seu medo de pessoas e sua personalidade forte.
Daria um livro só de contar tudo o que passamos juntos e tudo o que nos contaram as pessoas que dele cuidaram na hospedaria. E depois que veio morar em nossa chácara, como a coça que ele deu em meu cavalo, que tem o dobre de tamanho dele. Quem sabe, para o futuro...
Thor foi um nome humano perfeito para esse animal que relincha com a sonoridade de um trovão. É bom de ouvi-lo pela madrugada silenciosa enquanto a Lua despende do céu ou pela tarde, enquanto conversa com alguém do pasto distante. Estremece o corpo de ouvidos distraídos.
Mesmo depois de castrado – devido a tantas confusões e ao que mais prometia – podemos ver Thor correndo pelo pasto com a cauda embandeirada e relinchando para os vizinhos – e vizinhas. Apesar de ter-se acalmado e muito, ainda se vê como líder e não deixa de namorar sempre que encontra uma oportunidade.
O cavalo é minha conexão direta com a natureza. Posso dizer o mesmo das plantas de meu jardim, entretanto, o cavalo, me leva mais além. Tocá-lo é trazer um pouco dele pra mim e passar um pouco de mim pra ele. Há muito de inexplicável entre as sensações que trocamos, entre as experiências que vivenciamos juntos. Ele me desafia e me encoraja; ele briga comigo e, noutras vezes, deixa que eu brigue com ele.
A cada novo passeio, a sensação renovada, a troca de energias, nunca é igual. E, por vezes, triste, magoada com alguma coisa, o encilho e ele já sabe do pesar de minhas mãos e meus monossílabos tônicos. Saímos juntos e sós e desbravamos o mundo à nossa maneira. Esqueço do mundo humano com seus paradoxos. Voltamos para casa in-satisfeitos. Felizes, pelo conforto do descanso, a relva verde, um passeio tranquilo; tristes, por termos de domar nossas almas livres em terreno civilizado, humanamente civilizado. Ele me compreende e eu o compreendo. E nos respeitamos.
O Thor é um cavalo pragmático.
por Elayne Amorim

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